O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Leben Geist

Naquele dia preferi deixar o carro na garagem, movida por alguma intuição que pendia à necessidade de caminhada. Embora eu andasse a passos longos, mesmo que não estivesse apressada, percebia a movimentação quase nula da rua. Encontrei dobrando a esquina da longa rua um senhor, já grisalho e muito distinto, vestido à moda antiga, perdido entre as calçadas, sem saber escolher o sentido certo de sua andada. Deu-me bom dia, respondi da mesma maneira. Parou ao meu lado, deduzi que ele queria falar algo. Assim, também parei. Perguntei-lhe o nome, e ouvi alguma coisa que meus ouvidos não conseguiriam traduzir. Dei de ombros, sorri, e ele me respondeu com um sorriso. Olhou em direção ao meu pulso e viu que ali havia um grande relógio dourado, e então me perguntou se eu não tinha medo de que me roubassem o tempo. Sorri. Mal deu tempo para que eu respondesse e ele perguntou-me as horas, como quem não quer perder a viagem. Eu me lembro - disse ele -, lembro bem de quando ela tinha a sua idade. Pedi-lhe as horas, recebi em troca um sorriso, café todas as manhãs, ternura, três filhos, alguns netos, uma boa casa e grandes lembranças. Hoje, veja só, eu estou longe de todos eles, mas não tem nada. Hoje, também, estou perdido. Amanheci com a liberdade de ir aonde eu quiser, mas também com saudade de algo que jamais voltará, porque já foi vivido. Resolvi começar por aqui. É o começo.

Mesmo que aquilo por si só já tivesse me emocionado, não entendi a razão do desabafo. A arbitrariedade de tudo o que sentimos necessita sempre da percepção que lhe caiba. Ainda assim, permaneci atenta. Enquanto ele tirava o lenço do bolso para enxugar a testa, disse-me que daqui a pouco choveria, e que seria melhor que eu voltasse em casa para fechar as janelas, assim não molharia o tapete da sala. E concluiu: nem todo mundo cultiva o pensar numa sala onde há televisão. Sorri. Eu vi que nele havia algo de empolgação e frescor, como quem sobe as escadas de uma escola nova, no seu primeiro dia de aula. Era como se fosse um novo dia de uma vida nova. Perguntei sobre seus filhos. Não que eu me interessasse pela vida dos outros à primeira vista, mas sim porque achei que pelo fato de ele ter mencionado, achei que haveria relevância para o dia dele se por acaso alguém compartilhasse a lembrança. Confuso, ele resumiu as sílabas. Olhou-me com todo o pesar do mundo contido em meio às suas rugas, como se, melancólico, relembrasse seus quem sabe oitenta e alguns anos, mas não estava triste. Ao mesmo tempo, expressava perfeitamente no rosto todo o peso de sua sabedoria, coisa de quem já viveu tanto que por si só já é grandioso. Foi tudo muito lindo. – continuou - Uma longa vida. Um traço perfeito. Ame seus personagens, minha filha, ame seus personagens. Eles não vieram à toa.

Sorri, transparecendo carinho, e era só o que eu fazia, não sei dizer por quê, e poderia ter respondido a tudo isso, mas não sei por qual razão apenas sorria. E enquanto ele falava e admirava as flores que saltavam do muro de uma casa do bairro, percebi que não se preocupava com as deformidades da calçada. Andava sem olhar para o chão, sem apoio, bengala, ou coisa que o valha.  Era como se uma leveza atípica lhe tomasse, como um enfermo que de um minuto a outro ganha vida em suas pernas e decide atravessar a praia. Senti-me uma tola desdenhando a paisagem do céu.

Lembro que logo depois começou a chuviscar. Ele continuou: Sei que cada dia é um mestre. Sei que nem sempre é fácil o fato de pensarmos. É, o pensamento é uma longa viagem. Da hora que acordamos à hora de ir dormir. É complicado, você sabe, pensar... temos sempre que tomar decisões, decidir por isso, por aquilo, mesmo que a gente não perceba, já está decidindo alguma coisa. É o verbo da vida, decidir, sabe. Você decide o minuto de obedecer ao despertador, decide a quantidade de xampu, decide a cor das meias, decide. Mesmo que seja para decidir entre manteiga e geleia, água e chá. Mas a gente tem que resolver o tempo todo, e isso deveria cansar, não é, mas não cansa, é incrível. E nisso cultivamos vínculos, construímos nosso acervo de memórias e companhias, por toda a vida. Meus amigos e minha família, do mesmo jeito é pra você. É desse jeito. Temos os dias em que tudo é delicado demais, com muito pouco a linha se parte. Há dias mais suaves, e por aí vai. Mas há o grande dia em que a gente simplesmente some, acabou o tempo, acabou a hora. A gente vai embora, e é impossível voltar. Aí a gente lembra de tudo como um filme, e vê um monte de coisinha que antes não tinha percebido, mas que ainda assim vivenciou, e sente saudade e fica feliz por ter finalizado as metas. E você pensa que só porque há saudade significa que algo ficou inacabado? Não, minha jovem, a gente sempre vai na hora certa. TUDO vai na hora certa. Acho que você entende o que é isso. Você aprendeu bem, é, você sabe aprender. Você será muito feliz, porque decidiu as coisas certas. Se algum dia lhe sobrarem dúvidas, lembre-se disso. Sei que cuidam de você. Cuidam muito bem. Mas me diga, você se lembra que dia é hoje?


Não preciso dizer que simplesmente sorri. Acho que naquele dia eu acordara sem muita agilidade para pensar em respostas, apenas para me admirar com o inexplicável. Era como se eu conhecesse aqueles olhos. Era como se eu fosse a moradia daquelas palavras. Mas não sabia por quê. Tudo soava como folhear fotografias antigas. O que era chuvisco se transformou em pingos grandes - começava a chover forte. Olhei para o céu e até onde meus olhos conseguiam enxergar só pude ver cinza. Baixei a vista e já ia esboçar um “ih, e num é que vai chover?”, mas o senhor simplesmente havia desaparecido.

Olhei para o relógio e percebi que ele estava parado no dia 23. Procurei o botão para corrigir a data, mas acho que ele havia caído. No chão, encontrei um papel de confeito, desses antigos, redondos, e me lembro que eu comia na casa dos meus avós quando era pequena, e lembro que era aquele que fazia toda criança se engasgar. Lembro que meu avô adorava. Lembro que comíamos sempre juntos, acho que nem fabricam mais... E, imediatamente, com um nó na garganta - não pelo confeito, mas sim pela memória, lembrei que ontem, dia 23, foi o aniversário de morte do meu avô.

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