O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

"Temos a arte para não morrer da verdade."


"Toda a arte e toda a filosofia podem ser consideradas como remédios da vida, ajudantes do seu crescimento ou bálsamo dos combates: postulam sempre sofrimento e sofredores."



[Nietzsche]
[obra: minha preferida de Modigliani]

sábado, 17 de setembro de 2011

meus ombros já não suportam o mundo


Não me acho muito, mas me acho grande. Dou-me o direito de me evidenciar. Dou-me o direito de me defender, de não desbotar, de não desaparecer. Todos nós somos cegos dos outros, todos são cegos de mim. Mea culpa, culpa sua. Sou estátua que se move. Não sou nada, mas sou algo. Sou um mosaico de mal-conhecerem, um enigma a tudo o que não vem de dentro, aquela que enxergam, mas que ninguém vê. Assim somos todos, assim como a maioria, assim como você e ele. Somos cartas de um jogo da memória, muitas vezes organizadas em pares avulsos, e não em combinações iguais. O que sou e o que você vê de mim não são a mesma coisa. Ninguém me conhece. Mea culpa.

Sou sorriso de Monalisa. Sou borboletas na cabeça, pensamentos que não exponho, vontades e opiniões que calo até que alguém os faça à mesma medida, ou em proporção similar. Apenas concordo com a cabeça. Sorrio, quando não tenho o que fazer. Falo muito baixo e não consigo espaço.

Sou a boa bailarina para o açougueiro, a excelente aluna para o vigia, a mãe carinhosa para o dentista, a perfeita dona-de-casa para o professor, a amiga ideal para a estátua da praça. Sou sempre o velamento de um ser que nunca se revela, bla bla blá, sou sempre alguém à pessoa errada. Acordo existindo e erro de destinatário, bato sempre nas vistas erradas. Sou balela metafísica. Nunca a combinação correta. Não me deixo ser vista. Sou sempre a que não sucumbe ao desvelamento inteiriço, a que não sabe como andar até ao espelho, a que desconhece o reflexo e o cheiro. Sou a muda que muito tem a dizer, a que cala, mas que pensa, e muito. A que é, mas que não diz. Aquela que família, amigos e anônimos jamais conheceram, que absorvem e não penetram, a que jamais se complementa, a que deixa estar, a que respeita o silêncio que lhe oculta. A que dá o reflexo a quem não vê, não sei se por desastrada ou por acanhamento, sempre oculta nas interjeições e na complacência, no aham que não opina, na máscara do “e se”, no cacoete do “deixa pra lá”. A que enforca a própria garganta, mesmo sedenta de vomitar a essência. Clara como a água que não o é, cuspo um desabafo de 25 anos de vontade de ser o que quero e não consigo, ser aquilo além do visível, e juro ainda que sou mais e melhor, e enxerguem, estou aqui, e amigo, quero um copo e um trago, e meu Deus aqui dentro sou barulho e por fora sou vazio, e permita-me uma dose, e juro que existo, e o nome disso é frustração.

They'll send an S.O.S to you

Palavra e pensamento são criadores, precisamente por se instalarem como nascente. O perigo mora onde houver espaço.

Ao passear pela noite, vejo mil faces em diferentes cores. Vejo os mesmos autores e suas obras (as do verbo obrar, e não as do verbo criar). Vejo as mesmas retóricas vazias de significado. São todos personagens fictícios. Vejo maridinhos mimados traindo as suas grandes mulheres. Vejo garotas com complexos de Édipo mal resolvidos, e chego a jurar que não têm mãe nem pai, desejando os de compromisso e contradizendo a própria vontade de quererem algo fixo para si, brindando assim à contradição, a ignorância de si próprias. Vejo homens sem pudores, e até diria sem escrúpulos e sem culhões, desmerecendo o respeito que algumas enfim conquistam e desejando aquilo que não lhes é de direito. Usam como perfume - ou como ausência dele - o desrespeito. Vejo, também, pessoas aquém, semeadoras da discórdia, dos boatos e da malícia, porque a doença mental que é a mediocridade lhes tomou todas as outras prioridades na vida, e acredito que falta sexo nas suas rotinas, gastando o tempo para falar dos outros e para pescar maus comentários. São vespas bêbadas. Também vejo almas encalhadas nas próprias angústias em solidão, desesperadas em levarem para casa algo de mais interessante do que a própria existência, arquétipos empestados de complexos narcísicos, obcecados por se vangloriarem na adversidade refletida nos outros, jurando a inveja alheia e a cobiça de suas vidas medíocres, tão fedorentas debaixo do tapete. Vejo também aquele marido de liberdade enrustida que, no momento em que é solto, confessa o seu viver de aparências, e não conte a ninguém pelo amor de Deus, já mudei de idéia, tem a prole, e deixa eu voltar para casa para sorrir e calar, porque fui bem criado e honro minhas responsabilidades.

Garrafas, canudos e copos. DRINK ME, diria o rótulo. Beba-me. Obedece aquela alma de curiosidade e fraqueza. Em que mundo você vive, Alice? Não há mundo, não há chão, há vazio, na vida e nos pensamentos. Nada perdura. O clichê do efêmero com gelo e limão, ou não. Beba-me - e você cresce, você diminui, você some. Jamais permanecerá como era. Transforma-se. Muda à medida que molha a garganta, rega as idéias. Uma personagem que lhe afasta da verdadeira persona. Outra maneira de ser outra pessoa. Máscaras. Um vir-a-ser, uma mutação. Um sendo, enquanto durar a porção. Um ser aquilo que não é.

São cenas de um cotidiano corrupto, moribundo, mundano – o do mundo - , escarro dos bons, solitários à beira do abismo, em busca de álcool que limpe as feridas, que esterilize a agonia do fracasso. O que cheira a podre em perfumes caros. A ignorância em trajes de gala, autoconhecimento comprado em cigarreiras. A angústia anunciada. Pessoas e suas garrafas numa versão mais subterrânea de Message in a Bottle, com suas mensagens digeridas entre goles e gritos, quiçá pedidos de socorro, um “tirem-me daqui” que jamais é ouvido – há peso demais e a mensagem só afunda. Eixos mareados nas águas salgadas ou amargas do imperfeito, à espera de alguém que supere o abismo de abrir a rolha e traduzir uma alma. Uma babel das mesmas dores, do mesmo tédio, das mesmas rotinas, do velho museu de novas feridas. Eu? Você? Nós sobrevivemos.


[Schopenhauer diria: A vida oscila como um pêndulo entre a ansiedade e o tédio. Contanto que ele não generalize, eu acabo por concordar.]