O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

quinta-feira, 23 de julho de 2015


Coisas que dão leveza ao fardo do dia:

O cheiro do meu filho quando beijo o seu rosto, e a maciez dos fios do seu cabelo por entre os meus dedos, enquanto conversamos; a sua voz, me perguntando sobre tudo, enquanto me concentro nas dobras das roupas lavadas e não passadas; quando ele me chama de "mamãe", não importa a hora, mas sempre com carinho; o ruído de quando ele morde a cenoura crua, antes do almoço; suas palavras quando reza antes de dormir.

O meu travesseiro, que de tão fofo afunda quando deito; o estalo das minhas costas quando deito à noite; dormir no escuro; o gosto do café com leite, doce e quentinho, pra inaugurar o dia; a camada crocante do queijo assado no meio da manhã; o suco de melancia pausado na boca; o cheiro de purê de jerimum na hora do almoço; o seu sabor.

O chão lisinho de quando está super limpo; o cheiro do amaciante perfumando a sala, em dia de lavar a roupa; o sofá cheiroso em dia de filme; o edredom macio e a primeira taça do vinho-das-sextas-feiras.

Adentrar a madrugada presa em um livro, sem conseguir dormir; sonhar e acordar no meio da noite; tentar adivinhar que horas são; pisar o chão com meias fofinhas e deslizar os pés doloridos dos dias longos; banho quente e todos os cremes cheirosos debaixo do pijama; cremes no rosto; gosto de pasta de dente na boca.

A janela aberta quando venta forte. A luz apagada quando estou sozinha. Música enquanto cozinho. 
Sons de desenho-animado-de-menino enquanto lavo a louça. O barulho da chuva. O desenho que os pingos da chuva fazem na janela da sala. O assobio do vento na janela do apartamento.

Meus álbuns favoritos.
Meu perfume favorito.
Buzinar bem alto em dias de trânsito louco.
O passe das segundas e quartas-feiras. Às vezes das terças e quintas.
Frapê de cappuccino no cinema.
Pipoca com muito alho.
Pão de queijo.
O peixe fresco dos dias de sushi com meu filho.
Bastante wasabi.

Meu filho manuseando o hashi. O modo como ele anota a página do livro para continuar na noite seguinte. Suas bochechas rosadas de tanto comer bem. Sua risada. Seu abraço. O fato dele existir.
Meu filho e minha bolha.

domingo, 19 de julho de 2015

de vinho tinto de sangue


É tão sufocante que eu não sei nem por onde começar.

Em tempos de vertigem e embrulho no estômago, quando tudo parecia sem jeito, sem conversa, sem acordo, sem rumo, sem acerto, se um vento de leve balançasse as folhas da árvore certamente já seria um bom motivo para sorrir. Em meio à brisa que chegava, tudo que não fosse adeus parecia completamente bem vindo.

Numa bela noite de tantas eu peguei no sono e passei a sonhar. Na verdade, eu achei que seria um sonho, mas não foi. Foi num daqueles dias normais: depois de um longo dia de rotina, abri a porta do apartamento e tirei a sapatilha – a número 112, dentre as 300 da coleção compulsiva; a preta, que se parece com a verde, a bege, a marrom, a vermelha e a de oncinha..., a não ser pelo lacinho de strass na ponta –, adentrando com pés descalços o espaço de chão geladinho.

Banho quente, pés molhados no tapete felpudo, toalha fofinha e com cheirinho de amaciante. Vapor no espelho, tudo certo. Creme no cabelo. Cabelo ensopado. Olhos fechados e som ligado. Praxe. Fui ao quarto em busca do roupão gigante (aquele branco que mais parece um abraço de mãe urso) para assim mesmo me deitar na cama. Achei que aquilo definia felicidade. Achei que ela duraria para sempre. E então dormi.

Adentrei um abismo de angústia. Não foi como Alice (longe de ser, infelizmente), que se precipita em um buraco em busca do coelho atrasadiço, experimentando a melhor viagem de sua vida, acumulando lições e filosofias. Foi como se me acorrentassem a um pesadelo, e posso jurar que de fato havia correntes, pois ouço o barulho delas até agora.

Depois desse dia talvez eu não tenha permanecido a mesma. Foi como se de uma hora pra outra eu tivesse sido jogada num limbo, num inferno-de-alguém, na vida de qualquer outra pessoa que não a minha. Fechei os olhos (ou abri?) e havia um homem. Um homem chegando à minha vida. Seus olhos mal piscavam, lembro bem. Pele morena, olhar gélido e redondo. Falava sempre em mil arrodeios. Em tudo. Da cerveja às relações passadas. Seduzia. Manipulava. Contava de quando foi caluniado (porque diziam que ele batia na outra), tadinho. Contava em voz aveludada as suas encenações, digo, atividades no Centro. Caí envenenada pela força do seu discurso. No início nada parecia ter problema, mas este é o lado ruim de não conhecer a fundo alguém. A pessoa acredita, sabe. Acredita porque não enxerga. Uma casa com cortinas fica muito mais bonita. Ninguém vê a bagunça de dentro ou de fora. E havia inúmeras cortinas nesse início de sonho. 

O vilão era muito bonito, sempre achei. Lindo aos meus olhos. Feito sob medida, em tudo. Sua pele dava choque, e acho que química é bem isso mesmo. Tantas vezes entrei em transe ao encostar o meu corpo no dele, o meu rosto no dele. Apenas encostar. Lembro do quão viciada eu fiquei no arranhado da sua barba, no seu ombro para dormir, no seu toque, no seu beijo. O cheiro era como feitiço. Coisa de ciganos de outra vida. Foram poucos e longos dias entorpecentes, dentro de um longo ano escuro. Mas o vilão não era só isso. Aliás, “isso” dava conta somente de 10% de quem o vilão era.

Perverso. Julgava as pessoas. Fazia-se de santo (porque há quem pense que médium é sinônimo disto). Tinha cacoetes de estalar o ouvido e coçar o nariz, assim como todo vilão de histórias que possui um trejeito peculiar e único para distingui-lo dos demais personagens. Tinha a voz arranhada quando se aborrecia. Perdi as contas das vezes que gritou comigo.

Esse homem talvez não admita, até hoje, mas tratava-se de um vilão esquizofrênico. Sim, no sentido mais literal de ser, patologicamente falando. E tenho pena dele por isso. Não é fácil ser diferente num mundo de loucos-normais. Infelizmente, não é todo mundo que se permite ser tratado. O vilão é um desses. E a negação é o pior vício do doente.

Essa doença traz consigo correntes profundas. Não só a ele, mas a quem ele julga amar.

Por muitas vezes, acorrentada, lembro de ouvir os seus gritos. Ganhei muitos deles, antes mesmo de ganhar flores. Eram centenas de buquês de palavrões. Buquês sem necessidade de datas especiais. Mãos que machucavam. Mãos pesadas, mãos fortes, mãos cegas, e meus braços doíam. Meu rosto latejava.

O vilão não tinha vida. Não havia resquício cognitivo coerente à sua idade. Idade mental de um adolescente, pensamentos fúteis de um adolescente, malcriações de uma criança. Um garoto crescido e sem perspectiva. Não havia formação, ocupação, futuro. Procrastinava o quanto fosse. Havia, por outro lado, a inércia de fingir ser boa pessoa e a obsessão em vampirizar alma alheia. E eu era seguida, perseguida, investigada, eu, eles, todos, minha vida e a de quem quer que mencione o meu nome.

Eu não podia dormir sozinha nos finais de semana (e às vezes até mesmo durante a semana). Se eu tentasse, ele invadiria o meu apartamento às 11 da noite. Por outro lado, se eu conseguisse, ele chegaria às 7 da manhã, esmurrando a minha porta até que eu abrisse. Você sabe, só para checar se eu não dormi com alguém.

Esquizofrenia é um fardo pesado, talvez de corajosos espíritos que pedem para reencarnar da pior maneira possível, a fim de restaurarem dívidas passadas. O que lamento é que, sinceramente, estamos diante de uma vida desperdiçada (quem sabe o vilão obtenha êxito na próxima...).

Ainda não entendo como é possível que uma pessoa que se esforça tanto para aparentar ser um anjo inofensivo insiste e jura que é traído por todos (como pode uma pessoa tão boa ser tão injustiçada/ofendida? Incoerente, né?): o amigo traiu a confiança dele, certeza, aposto que tentou furar o meu olho; a namorada do amigo tá traindo, eu tenho certeza, tá na cara; aquela menina ali age como se traísse, olha aquela outra ali sensualizando, aquela ali não é flor que se cheire, viu o decote dela?; olhe ali, a calcinha dela aparecendo, olhe você mordendo os lábios indecentemente! Pare de ter olhos sensuais. Sua puta.

O vilão ouvia vozes que nenhum médium conseguiu encontrar, até hoje. Alguns deles imploraram para que eu levasse o vilão (e as vozes) ao psicólogo. Bem tentei. E tais vozes falavam coisas que até hoje me dão asco, tamanha a incoerência dos delírios (afinal, se eu era vigiada 24h por dia, obrigada a passar horas trancada em seu quarto, ou em seu carro, ou em “seu” Centro...). As queridas vozes eram implacáveis com o vilão. Ele contraía o rosto e coçava o ouvido, fazendo cara de dor. Diziam que eu havia marcado um almoço secreto com algum amante, por exemplo, e que tinham certeza que eu havia me encontrado secretamente com alguém. Faz sentido, afinal eu não tenho um filho para cuidar todo dia, com minutos contados, não tenho que fazer almoço, não tenho que passar farda, preparar lanche, deixar a criança na escola, pontualmente... loucura, não?

E então, punida por tais denúncias das vozes-do-vilão, eu passava horas trancada em seu carro, por tardes inteiras, enquanto ele dirigia sem rumo, falando ofensas a mim. Talvez numa tentativa de se certificar que eu não estaria com mais ninguém.

Tentei fugir muitas vezes. Chorei muitas vezes. Quis mudar de endereço. Quis sumir de verdade.

Para ser mais exata, tentei fugir em todos os finais de domingo de todo o ano de 2013 (sim, esse pesadelo já completa 2 anos). Finais de domingo, porque sim: ele pedia ouvidos na sexta, em tom de reconciliação, brigava e fazia questionários absurdos até o sábado e no domingo eu desistia. Doentio, confesso. Só que mais doentio do que isso é não ter lugar pra se esconder, se até os meus porteiros diversas vezes ele interrogou/subornou (e eu não tenho certeza quanto ao pretérito).

Quis pedir socorro. Mas não tive coragem de contar a alguém. Tenho medo constante.

Sei que o vilão tinha complexos e não sabia lidar com rejeição, qualquer que seja. Como uma espécie de autodefesa, ele subjugava principalmente as mulheres, numa viciosa espiral de misoginia. Putas, infiéis, vulgares, burras, e tudo aquilo que jorra de um rosto quando cai a máscara. A cada rejeição minha, ele me atribuía um novo amante. “Só pode estar com outra pessoa, para não me querer!” – e atribuía nomes, aleatoriamente, de acordo com critérios próprios, ainda que arbitrários –; piamente idealizou cenas e conversas, e as tomou como verdade. E me narrava esses acontecimentos, ofendido, jurando que eu morreria. Descobri que fiquei com muitas pessoas, vejam só (coitado, mal sabe ele que quase não saí de casa nesses últimos anos, cercada por seus olhos doentios).

Dizem que doentes assim têm uma inclinação para a bebida. Fato. Ele era capaz de beber 48h sem tropeçar, numa força sobrenatural de 300 homens sugando o seu álcool. Ele os chamava de obsessores. Era quando eu mais sofria. Sua força aumentava, junto a essa resistência. Nesses dias de longos porres, naturalmente, quando eu conseguia me esconder de seus olhos, meu celular era bombardeado com 500 mensagens entupidas de palavrões. Jamais conheci tamanho inferno, tamanha tortura psicológica.

Um dia o vilão não aceitou mais um ponto final nesse relacionamento vampiresco. Ih. Quase que o mundo acaba. Parando para pensar, se eu contei direito, foram mais de 30 rompimentos, fácil. Acumulando os dias de paz, talvez tenhamos ficado juntos um mês, quem sabe. Em cada vez que eu tentava fugir, mais compridas ficavam as correntes, e o vilão sempre me alcançava. Passei a ter medo. Fiquei encurralada. Ilhada. Cercada. Tive meus amigos seduzidos, manipulados, questionados discretamente, e isso se dá até hoje, quando vejo o vilão se aproximando de alguém conhecido meu, na tentativa vã de materializar a minha vida.

Foi um longo sonho-pesadelo. Foi como se eu tivesse me mudado para um vilarejo no umbral. Senti pena de mim e, mais do que isso, senti pena do vilão. Preso a uma bolha de loucura, num corpo adoecido que não o deixa ser feliz. Preso em si mesmo e dentro de uma mente às avessas.

Não há cura, não há verbo e nem adjetivo, e desprezo já não traduz o rombo na minha alma.

Honestamente, eu rezo para que um dia o vilão deixe de ser vilão e se torne o mocinho. De alguma outra história fantástica, naturalmente. E quem sabe em outra vida.

Rezo também para que esse pesadelo enfim termine. Que a bola de neve derreta e se transforme numa piscininha linda de água bem quentinha. É o que eu queria nesse exato momento. Por ora, restam as inúmeras pastas arquivadas em celular, e-mail e computador, com as suas quinhentas mensagens eternizadas e fotos de seus surtos psicóticos (traduzidos em meus hematomas), provas cabais e minha única defesa contra as máscaras dele. É tudo o que me resta. Além do medo, é claro.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

voltei.


Falo já. Falo um dia. Falo muito. É que a viagem foi longa e por pouco eu sobrevivi. Quase fui e não voltei pra dentro de mim.
Falo já.