O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

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domingo, 24 de abril de 2011

A cidade muda



Mudez, mudança. Afasia. Afonia. Mudança. A cidade, muda.

Os livros não mudam - Diferente de exposições, teatros e shows. -, diferente dos homens e das cidades. Podemos gravar a música, mas o som reproduzido não é a música do artista, da mesma forma que a reprodução de um quadro não é o quadro. A reprodução de um texto é o texto, embora eu me preencha com um pouco de paródia. Quadros, peças e esculturas envelhecem, craquejam, precisam ser restaurados. Os olhos e ouvidos, assim como a sensibilidade dos homens, mudam. A cidade.

Saio de casa, fecho a porta e caio na cidade. Ando nela esquecendo-me que daqui a 40 anos, 23, 35, um ano e oito meses, ou daqui a uma hora e 47 minutos posso morrer. Andamos com o medo de ser machucados, mas não com a lembrança de nossa morte futura. Só podemos viver e andar na cidade porque somos imortais. Ou não? E vamos criando anticorpos a cada esquina atravessada, para qualquer enfermidade.

A cidade muda. A cidade que conhecemos muda a cada minuto. O mundo muda. Na verdade, nem muda, por aquilo já não ser mais aquilo, e pelo 'isso' não ter tempo de continuar a ser 'isso' e em seguida deixar de sê-lo, no segundo seguinte. A cidade muda. Porque reconhecemos seus volumes, continuamos a chamá-la de nossa cidade. Surpreendo-me com um espaço vazio ou um novo prédio - não estava lá da última vez, lembro com certeza. Mas sei o que estava antes? Não. A ausência do que não me lembro, sua demolição e substituição, ou a reforma de uma fachada, a transformação do uso de uma casa em outro (agora é uma padaria, e o que era antes?), me fez pensar que eu estava perdendo a cidade que nunca guardei.

Ao deixar de perceber o que ali havia, no momento em que deixo de ver algo que ali jazia e agora já não há, tenho a mesma sensação da de quando percebo que uma peça que queria assistir saiu de cartaz. Uma representação não se repete. A percepção do transitório que compõe a cidade e sua vida trouxe à lembrança minha própria finitude, a co-habitação da indesejada das gentes nesse corpo que sou eu. Não vi, e portanto não continuará existindo em mim, aquela casa agora demolida, a peça não assistida. Não podemos estar em todos os lugares ao mesmo tempo, uma platitude física, mas podemos nos esforçar para estar onde estamos. Olhar e enxergar em volta. Uma casa e um prédio no meio do caminho. As pessoas, pedras ou árvores - aquelas que lhe prejudicam e aquelas que lhe dão sombra e abrigo.

Mudamos junto com a cidade, nós morreremos e ela continuará sua transformação. Tentemos, com distração, captar pequenos sentidos possíveis em nosso trânsito diário, passando adiante. Seja em uma conversa boba, indo ao cinema, na tal fila do supermercado em véspera de feriado, na nova livraria inaugurada, na árvore centenária recortada da imagem do bairro, no terremoto que adentrou o hall das notícias, no cachê diabólico pago ao padre que canta, no hotel antigo demolido naquela rua movimentada, nos pés de jambo colorindo as calçadas da minha avó, na quantidade de linhas horizontais que dão movimento aos volumes verticais, no cheiro de praia que perfuma Janeiro e o começo da rotina maquinal que reverencia Fevereiro em diante. E feliz ano novo, até o próximo reveillon.

Enxergar, apontar, nomear e narrar é também criar uma existência e poder passá-la adiante. Os livros não mudam, mas só existem dentro da ação contínua da vida, só acontecem quando lidos por olhos que mudam e passam adiante.


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(Fotosdasfotos: com minha mãe; Saarbrücken, cidade natal que voltará a ser morada por algumas semanas de Junho. Além de Frankfurt e - só um sopro de - Lisboa.)

Um comentário:

  1. Ao deixar de perceber o que ali havia, no momento em que deixo de ver algo que ali jazia e agora já não há, tenho a mesma sensação com as pessoas à minha volta. Transitam entre o efêmero, o bem e o mal, entre as cores e cortes, entre as roupas e vozes. Nossos filhos. Nossos pais. Tudo recuperado na memória das fotografias, reestabelcendo as imagens paralisadas no patamar da mudança.

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