O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

O recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Beyond the invisible, through the mirror


Era uma tarde atípica quando tudo aconteceu. E aí me deu o estalo – mais um pedaço do consistente véu saltou dos meus olhos... E acredito que de dentro da caverna eu tenha até dado uns passos adiante, mesmo que míseros, me aproximando da claridade e da lucidez, de onde pertinho costumo passar diariamente, muito embora ainda não habite nelas.

Era uma tarde atípica, como falei. Pelo menos assim a defino hoje em dia, em meio à rotina de filho e marido, faculdade e bukowskiorismo-de-fins-de-semana. Foi em uma terça, quando não tenho aula, nem reunião do grupo de estudos, nem alemão, nem academia, nem casa para arrumar. É o dia de não sair da redoma. Nas terças diferentes dessa eu teria ficado em casa, comendo pipoca e cuidando do pequeno príncipe, lendo um livro e fazendo papinhas, ouvindo música e namorando, arrumando a casa e vivendo a boa rotina. São assim as terças-feiras. Mas nessa decidi ir ao shopping trocar um livro que ganhei de presente, maravilhoso, porém repetido. Nessa terça, por volta das 16h, entrei no carro e segui a avenida, a BR, as ruas e os semáforos. Era um dia chuvoso, - ou plúmbeo, como descreveria Fernando Pessoa... Mas ainda grisalho na minha descrição. Em outra narrativa esse detalhe climático não faria tanta diferença, seria meramente mais um clichê descritivo ou algo do tipo, mas nesta a chuva tem grande importância. Como chovia! Mal se via o metro seguinte de asfalto, mal enxugavam os pingos com o pára-brisa. Os carros marchavam em poucos 60km/h (em média), mas por me encantar um dia assim – chuvoso e úmido - , apenas pus os fones de ouvido e continuei o percurso embaçado. Dobrei algumas esquerdas e direitas e então cheguei ao shopping. Peguei o ticket do estacionamento e procurei uma vaga, mas devido à chuva, todas vagas próximas da entrada já estavam ocupadas. Posicionei o carro lá onde o vento fez a curva, suspirei fundo e não pensei duas vezes: saí andando vagarosamente até a entrada principal, debaixo de uma chuva densa e apressada. Eu estava zen demais para me preocupar com o fato de que me molharia toda...

Foi aí que a chuva se tornou o personagem crucial do enredo. Se não fosse por ela, eu teria seguido direto para a livraria, quiçá comprasse um café no meio do caminho ou olhasse umas vitrines no meio do percurso, mas talvez não fizesse a mesma diferença e até acredito que nem causaria o mesmo impacto do véu e da lucidez como a chuva provocou. Por causa da roupa ensopada e do cabelo molhado, dobrei à direita em direção ao banheiro, e lá entrei.

Como qualquer moradora-padrão de cidade grande impregnada pelo cotidiano maquinal e frígido, adentrei o banheiro olhando para o abstrato (às vezes para o chão, às vezes para o nada, às vezes apenas para aquilo que me interessava no momento: vaso sanitário, espelho, pia) e não dei importância ao que havia em volta (creio que lá dentro estávamos só eu e a senhora que faz a limpeza). Ainda abstraída, sentei a bolsa em cima da pia e rapidamente busquei o pente e uns broches de cabelo. Como já não havia penteado e franja que agüentassem os pingos que levei, penteei tudo para trás, e senti um alívio... puxa! Me dei conta que outro banho de chuva como aquele, sem compromisso, vaidade e programação, só tive quando criança..., aquilo tinha me renovado. Talvez uma experiência frívola, mas ainda assim enorme (quase eterna enquanto durou) e agradável!

Enquanto prendia o rabo-de-cavalo, subitamente a porta do banheiro se abriu com força, sendo empurrada bruscamente. Num ambiente como esse ninguém costuma observar quem entra e quem sai (talvez só a mulher da limpeza), mas por causa do barulho da pancada na porta, me virei para olhar. Entrou uma jovem em direção aos espelhos. Aparentava ter alguns 20 e poucos (muitos?), como eu. Acho que um pouco mais velha. O cabelo, cortado no nível dos ombros, estava solto e seco (provavelmente a chuva não a pegara), mas ainda assim vi molhado o rosto, mesmo que pouco, até acho que vi umas duas lágrimas quase secas, talvez roladas há alguns minutos, um choro contido, quem sabe. Era muito bonita. Muito mesmo. Tinha altura e formas de modelo. Estava vestida num estilo simples: nem desleixada, nem muito enfeitada. Talvez ela tivesse acordado naquele dia com um humor neutro, quem sabe, e olhado suas roupas e escolhido: “hoje me vestirei de coisa alguma.”. E assim ela estava, expressando personalidade alguma na forma de vestir, nada que nos fizesse adivinhar como e quem ela seria e do quê ela gostava. Apesar disso, sabia-se que ela tinha bom gosto. Seu esmalte vermelho me chamou logo a atenção, num lapso de futilidade. Suas mãos eram finas, percebi quando ela as apoiou na bancada da pia, paralelas e palmadas no mármore. Essa posição dos braços fazia com que os ombros se encolhessem curvados para frente, e enquanto isso ela fixava a vista no reflexo do espelho. Inerte. Imóvel. Muda. Não piscava, não piscava, não piscava... Cheguei a achar que ela morrera em pé, bem ali mesmo, talvez numa descoberta de seu logos, como aconteceu com o arquetípico Narciso. A respiração não entregava o estado dela, não estava ofegante nem relaxada. Era uma Monalisa sem sorriso e sem melancolia, misteriosa no seu tom de seriedade incógnita. De tamanha a pausa dela nessa posição, eu e a moça da limpeza não aguentamos e nos entreolhamos por algum segundos, dei de ombros e me virei novamente em direção ao espelho, agora fingindo lavar as mãos. O silêncio naquele banheiro começou a contrariar, aquilo já me intrigava... e pronto: a abstração de quando entrei no recinto foi substituída por “algo de humano ou sensível”. Tentei perguntar algo, está tudo bem, moça, aconteceu alguma coisa, posso ajudar, o que houve, mas não saiu uma palavra do meu devotamento curioso. A “pausa dramática” era tamanha que já me constrangia. Olhei para a moça da limpeza atrás de algum comentário, mas essa já havia desistido de sentir curiosidade e continuou a passar o pano na entrada. E a moça não se mexia. Talvez ela tivesse discutido com o namorado, ou sido demitida, ou algo que se inclua no conjunto de dilemas genéricos. Busquei solitariamente encontrar esses dilemas na sua expressão de Monalisa-sisuda-embora-serena, mas nenhum se encaixava, como era possível? Balbuciei ainda um “caham-caham” na esperança de que ela ouvisse e olhasse para o lado, dando uma pista, saída da bolha, mas foi em vão. Eram apenas ela e o espelho, solidões do reflexo e do objeto que reflete.

Demorei a entender, mas depois de enxugar as mãos e decidir sair dali para beber um expresso e fumar um cigarro no estacionamento, me dei conta... Aquela mulher, aquela mulher: ela nada mais era ali do que um protótipo. Um arquétipo, quem sabe? Nós, seres humanos, reproduzidos em bilhões pelo mundo, mas na intrínseca solidão do mirar o espelho; nós, sempre buscando um logos que nunca chega, respostas que nunca vêm, apenas enxergando o aparente; egos que olham para si da mesma maneira como olhamos nossos umbigos, nunca discernindo o além-reflexo; Narcisos incapazes de evoluírem, solitários nas respostas de sempre, no reflexo de sempre que o espelho lhes dá. É a solidão. O espelho, por sua vez, solitário também ele, pobre coitado, quando se faz obrigado a refletir apenas uma parte do Ser, o que pára na sua frente e vai embora, apenas exibindo o aparente.

Acho que naquele momento entendi o que realmente aconteceu dentro daquele banheiro. Almas gêmeas se encontraram.

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